"Voltai-vos para nós, Deus do universo! Olhai dos altos céus e observai. Visitai a vossa vinha e protegei-a!" (Sl 79,15)
Leituras: 1ª Leitura
Is 5,1-7 Salmo
Sl 79,9.12.13-14.15-16.19-20 (R.Is 5,7a)
2ª Leitura - Fl 4,6-9
Evangelho - Mt 21,33-43
Celebramos hoje, no domingo, a vitória de Cristo sobre a morte. Esse dia, "com efeito, é o dia em que, mais do que qualquer outro, o cristão é chamado a lembrar a salvação que lhe foi oferecida no batismo e que o tornou homem novo em Cristo"¹ . Na oração coleta desse domingo pedimos ao Pai que derrame sobre nós a sua misericórdia, perdoando o que nos pesa na consciência. Dilacerados por tantas experiências difíceis que tivemos ao longo da semana, Deus olha misericordiosamente para nós e atende à nossa súplica ofertando-nos a sua Palavra que é bálsamo em nossas feridas. Nesse processo curativo operado pela Palavra, o Pai, através do seu Filho, no seu Espírito de amor, nos transfigura numa hóstia de louvor. Assim, "eucaristizados" pela pão da Palavra vemos que Ele nos dá mais do que ousamos pedir.
Na primeira leitura escutamos o célebre cântico da vinha no livro do profeta Isaías² . Filho de Amós (cf. Is 1,1), Isaías exerceu sua atividade profética em Jerusalém, no reino de Judá, por volta da segunda metade do séc. VIII a.C. Como os demais profetas chamados por Deus, Isaías pregou a Palavra aos israelitas à luz dos sinais do tempo em que ele viveu. Aparentemente, Isaías vivia num período em que tudo parecia estar tranquilo, seja no âmbito político seja no âmbito religioso. No entanto, o profeta, com seu olhar crítico, observava que a realidade não era como as situações se apresentavam. Na verdade, o que se constatava no reino de Judá eram as grandes injustiças que ocorriam da parte das autoridades da sociedade: reis, governadores, juízes, latifundiários. Estes, que deveriam cumprir o direito e a justiça, são os primeiros a não os cumprir. Deixando-se corromper pela ganância, exploravam os mais fracos; dominados pela cobiça, oprimiam os mais pobres. Enfim, promoviam tudo o que desagradava a Deus. No cenário religioso, o culto apresentava o crescimento de grandes solenidades e práticas de piedade. Todavia, essas formas de culto, diante das injustiças descritas acima, evidenciavam a incoerência que havia entre fé e vida da parte do povo de Deus. Muitos desses cultos eram uma tentativa de "comprar" o Senhor a fim de que a culpa de suas consciências fosse amenizada.
Dessa forma, o profeta Isaías constata que a casa de Israel, antes, era a vinha de Deus e que o povo de Judá, a sua dileta plantação (cf. Is 5,7). Contudo, essa vinha plantada em fértil encosta foi preparada e cuidada com carinho pelo próprio Deus: Ele "cercou-a, limpou-a de pedras, plantou videiras escolhidas, edificou uma torre no meio e construiu um lagar; esperava que ela produzisse uvas boas, mas produziu uvas selvagens" (Is 5,2). Diante dessa triste realidade, o Senhor, por meio do profeta, permite que os habitantes de Jerusalém julguem o que está acontecendo para saber o que o seu Deus poderia ter feito a mais à sua vinha e não fez (cf. Is 5,3-4).
É importante saber que a "vinha" para a cultura judaica é o símbolo do amor. Este cântico apresenta a atual relação em que vive Israel ("esposa") com Deus ("esposo"). Nesse cântico da vinha, Deus é o vinhateiro e Israel é a vinha. Com o poder de seu braço, Deus trouxe do Egito essas videiras escolhidas e plantouas em Canaan, uma terra fértil. Removeu dessa terra as "pedras" que nela estavam, ou seja, os outros povos que eram um perigo à fecundidade daquele lugar e do povo eleito. Edificando uma torre, Deus mesmo vigiará sobre sua amada vinha para que, nela, não haja invasão e não seja destruída. Por fim, constrói um lagar onde possa ser feito o vinho do amor a fim de que seja sempre celebrada a sua Aliança. Mesmo com todos os encantos que Deus investiu sobre o seu povo, Israel enquanto "esposa" se comporta muitas vezes como uma "prostituta" por causa de suas infidelidades (cf. Is, 1,21-26). Tais infidelidades são a imagem das uvas azedas que o povo eleito retribuiu ao amor do seu "esposo". Ele esperava uvas de verdade, mas a sua "vinha" produziu apenas uvas selvagens (cf. Is 5,4). Diante desse cenário lamentável, o Senhor manifesta que vai desmanchar a cerca (a justiça e o direito) e ela será invadida pelos inimigos estrangeiros. Estes tornarão essa terra inculta e selvagem, ela não será podada e nem lavrada, os espinhos crescerão sufocando as boas lembranças que o povo viveu com o seu Deus "esposo". O povo vai amargar o pior fruto da sua infidelidade: Deus não deixará que as nuvens derramem a chuva sobre a terra que Ele mesmo investiu com todo o seu amor a fim de fazer prevalecer a sua justiça.
No Evangelho de hoje escutamos a parábola dos vinhateiros homicidas que faz parte do ciclo de três parábolas narradas por Mateus iniciadas no domingo passado. A referência de continuação com a parábola dos dois filhos, nós observamos quando Jesus diz: "Escutai esta outra parábola" (Mt 21,33). Tais parábolas evidenciam o público alvo de Jesus que são os sacerdotes e os anciãos do povo que questionavam a autoridade do Filho de Deus pelo ensinamento que Ele realizava. Como uma ressonância da primeira leitura, Mateus no Evangelho desse domingo apresenta como ponto de partida elementos semelhantes ao cântico da vinha de Isaías (Is 5,1-7).
Narrado por Jesus, escutamos que certo proprietário plantou uma vinha e investiu nela com todo seu cuidado e amor: "uma cerca em volta, fez nela um lagar para esmagar as uvas, e construiu uma torre de guarda" (Mt 21,33). Em seguida, a vinha é arrendada aos vinhateiros cuja missão era produzir frutos. Quando chegou o tempo da colheita, kairós ton karpon, ou seja, "tempo dos frutos", tempo de regozijo e celebração, o proprietário enviou seus empregados aos vinhateiros para recolher seus frutos. No entanto, o que houve não foi uma ocasião para comemorar os frutos colhidos, ao contrário, "os vinhateiros, porém, agarraram os empregados, espancaram a um, mataram a outro, e ao terceiro apedrejaram" (Mt 21,35). Mesmo enviando um número maior de empregados, ainda, assim, testemunha-se a mesma violência dos arrendatários. Até que, finalmente, o proprietário da vinha decide enviar o seu filho pensando que ele será respeitado e acolhido. Contudo, o pior também acontece: "os vinhateiros, porém, ao verem o filho, disseram entre si: ‘Este é o herdeiro. Vinde, vamos matá-lo e tomar posse da sua herança!’ Então agarraram o filho, jogaram-no para fora da vinha e o mataram (Mt 21,38-39). Diante da pergunta de Jesus, sobre o que o dono da vinha fará aos vinhateiros quando ele voltar do estrangeiro, os sacerdotes e anciãos do povo não hesitam em dizer que “com certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo”. A resistência em acolher Jesus como Filho de Deus é tão grande que a classe religiosa de Israel não percebe que os membros que dela fazem parte são a imagem desses vinhateiros homicidas. A situação dos vinhateiros é bem mais grave do que eles pensam. Os próprios sacerdotes e anciãos do povo proclamam a sentença de sua condenação quando dizem: “Com certeza mandará matar de modo violento esses perversos (Mt 21,41)". Nesse momento, em Jesus o salmo ganha seu pleno cumprimento quando Ele diz àqueles que indagam sobre a sua autoridade: "A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isto foi feito pelo Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos?" (Sl 118,22-23 / Mt 21,42). Pela dureza de seus corações, mostrando-se incapazes de produzir frutos, Deus vai tirar-lhes a sua vinha e confiará a outro povo que produza frutos.
Testemunhamos na história da salvação a ternura e amor com os quais Deus cercou a sua vinha, isto é, o povo que Ele elegeu com sua predileção. Porém, na ótica da Aliança, Israel correspondia com infidelidade ao seu "esposo" simbolizadas pela imagem das "uvas selvagens" (cf. Is 5,4). Mas Deus não se cansa de enviar mensageiros cujas vozes insistem para que os seus filhos dispersos voltem à comunhão com Ele. Até que, na plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho para que todo o gênero humano nele fosse recriado à sua imagem e semelhança. Ainda reproduzimos nos dias de hoje a imagem do Antigo Israel ofertando ao Senhor apenas "uvas azedas", sobretudo quando perpetuamos a injustiça contra o próximo. Obstinados em multiplicar o ódio, seja com as nossas palavras, seja com os nossos gestos, seja nas redes sociais, seja pessoalmente, perpetuaremos a espiral de violência. Dessa maneira, o nosso culto religioso evidenciará uma "auto-afirmação" do farisaísmo contemporâneo, querendo, de alguma forma, "comprar" Deus.
A respeito do Evangelho de hoje, São Macário diz: "O agricultor, indo lavrar a terra, deve pegar os instrumentos e vestir a roupa apropriada para o trabalho; assim também Cristo, o rei celeste e verdadeiro agricultor, ao vir à humanidade, deserta pelo vício, assumiu um corpo e carregou, como instrumento, a cruz. Lavrou a alma desamparada, arrancou-lhe os espinhos e abrolhos dos maus espíritos, extirpou a cizânia do pecado e lançou ao fogo toda a erva de suas culpas. Tendo-a assim lavrado com o lenho da cruz, nela plantou maravilhoso jardim do Espírito, que produz toda espécie de frutos deliciosos e agradáveis a Deus, seu Senhor"³ .
Irmãos e irmãs, estejamos cientes de que hoje é o dia do kairós ton karpon, ou seja, "tempo dos frutos", tempo de apresentar a Deus as nossas dádivas. Que esta eucaristia dominical, o Espírito Santo nos incite a fazer uma sincera revisão de vida, a fim de saber se estamos, como vinha eleita, devolvendo ao Senhor os frutos que correspondam ao seu amor por nós. Reconhecendo, portanto, as nossas infidelidades a esse amor do Pai em relação à Aliança que Ele selou com a cruz do seu Filho, não hesitemos de repetir em oração conforme o salmista: "Voltai-vos para nós, Deus do universo! Olhai dos altos céus e observai. Visitai a vossa vinha e protegei-a! Convertei-nos, ó Senhor Deus do universo, e sobre nós iluminai a vossa face! Se voltardes para nós, seremos salvos!" (Sl 79,15.20)
Ao nosso Deus toda honra e toda a glória pelos séculos dos séculos.
1 Carta Apostólica Dies Domini, n.25
2 O livro do profeta está dividido em três blocos: 1º) Capítulos 1-39: Proto-Isaías ou Primeiro Isaías: antes do exílio do povo na Babilônia. 2º) Capítulos 40-55: Dêutero-Isaías ou Segundo Isaías: período do exílio. 3º) Capítulos 56-66: Trito-Isaías ou Terceiro Isaías: período do pós exílio
3 Ofício de Leituras da quarta-feira da 34ª Semana do Tempo Comum
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