
Leituras:
1ª Leitura - Gn 1,18-25
Salmo - Sl 127,1-2.3.4-5.6 (R. cf. 5)
2ª Leitura - Hb 2,9-11
Evangelho - Mc 10,2-16
Em cada domingo, a Igreja celebra a vitória de Cristo sobre a morte. Esse dia, "com efeito, é o dia em que, mais do que qualquer outro, o cristão é chamado a lembrar a salvação que lhe foi oferecida no batismo e que o tornou homem novo em Cristo"1. Na oração coleta desse domingo, pedimos a Deus que derrame sobre nós a sua misericórdia, perdoando o que nos pesa na consciência. Dilacerados por tantas experiências difíceis que tivemos ao longo da semana, Deus olha compadecido para nós e atende a nossa súplica dando-nos a sua Palavra como bálsamo em nossas feridas. Nesse processo curativo operado pela Palavra, o Pai, com o seu Espírito de amor, nos transfigura numa hóstia de louvor dando-nos mais do que ousamos pedir.
O texto selecionado para a primeira leitura desse domingo faz parte do segundo relato da criação (cf. Gn 2,4b-3,24). Nele, escutamos a narração da criação da mulher. É muito importante compreendermos que o autor sagrado desse texto não tem a finalidade de apresentar um conteúdo de cunho histórico-científico. Ao contrário, seu objetivo é expor um conteúdo teológico mostrando que Deus é a origem da vida humana. Dessa forma, para apresentar a sua catequese, o autor sagrado recorre a inúmeros elementos simbólicos das cosmogonias mesopotâmicas adaptando-os à fé de Israel.
No texto, temos como cenário o "jardim do Éden", lugar perfeito onde Deus pôs o homem que Ele criou, cercando-o num espaço em que todas as exigências da vida humana serão satisfeitas: água abundante, árvores com variados frutos, vasto campo com suas verduras. Em suma, é um ambiente que expressa o ideal de felicidade, particularmente, para quem temia as dificuldades da vida no deserto. Observamos que mesmo diante desse cenário perfeito, Deus diz: "Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele" (Gn 2,18). A partir desse momento, o Senhor
realiza sua primeira intervenção em favor do homem: formou da terra todos os animais selvagens, as aves dos céus e os dispôs a Adão para que pudesse nominá-los (cf. Gn 2,19). Adão deu nome a todos os animais, mas "não encontrou uma auxiliar semelhante a ele" (Gn 2,20). A ação de "dar nome" aos animais incute a ideia de poder sobre eles. Todavia, ainda que o homem receba do Criador a sua autonomia e esteja associado à obra criadora de Deus, o Senhor percebe que o homem não está plenamente realizado e que ele não foi criado para viver sozinho.
Assim, um novo momento começa a surgir e Deus intervém uma segunda vez em favor da sua criatura que experimenta a solidão. O autor sagrado diz que "o Senhor Deus fez cair um sono profundo sobre Adão. Quando este adormeceu, tirou-lhe uma das costelas e fechou o lugar com carne. Depois, da costela tirada de Adão, o Senhor Deus formou a mulher e conduziu-a a Adão" (Gn 2,21-22). Como um "cirurgião" habilidoso, o Criador retira do lado do homem uma parte para formar a mulher. Como um pai, Deus conduz a mulher ao homem tal como a noiva é conduzida ao noivo. Essa segunda intervenção de Deus provoca no homem uma forte exclamação de alegria: "Desta vez, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada 'mulher porque foi tirada do homem" (Gn 2,23). Aqui, vale ressaltar que o termo o "homem" no texto hebraico é hish e "mulher" é hishah. Ambas as palavras evidenciam a igualdade entre os dois. Homem e mulher são criados com igual dignidade. O autor sagrado deixa claro que a mulher é um dom gratuito de Deus para o homem. Este, por sua vez, deve olhar para a mulher como parte fundamental da sua complementaridade e não a interpretar como inferior ou superior. Assim como homem, a mulher é obra prima do Criador, "criada enquanto o homem dorme, ou seja, enquanto está completamente inativo e incapaz de realizar algo por conta própria"2.
O autor sagrado conclui o texto testemunhando que a força poderosa do amor supera todos os vínculos de parentesco: "Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne" (Gn 2,24). Não há dúvida que esse amor vem de Deus. Somente esse amor divino é capaz de unir homem e mulher para que possam viver a experiência de serem uma só carne e um amor esponsal cujas raízes estão em Deus. Portanto, homem e mulher não foram criados para a solidão gerando o isolamento, mas sim para a relação gerando a comunhão.
No Evangelho, Marcos nos apresenta o matrimônio com um dos temas desenvolvidos por Jesus ao ser indagado pelos fariseus. O cenário geográfico apontado pelo evangelista é a Judeia e além do Jordão (cf. Mc 10,1) que serve como ponte entre as atividades de Jesus na Galileia, considerada como concluídas, e as atividades que realizará em Jerusalém. O texto evangélico que ouvimos, faz parte dos três diálogos de Jesus com a multidão. Neles, são abordados os temas do matrimônio, do acolhimento às crianças e o perigo das riquezas (cf. Mc 10,1-31). Nesse domingo, o Evangelho compreende os dois primeiros temas, cujos diálogos seguem o modelo de "disputas", visivelmente observado junto aos fariseus. Estes, por sua parte, vão ao encontro de Jesus para pô-lo à prova questionando sobre a legitimidade do homem poder divorciar-se da sua mulher (cf. Mc 10,2). Na expressão "pô-lo à prova", o texto grego utiliza o verbo peirázo3 que pode ser traduzido como "experimentar", "tentar", "desafiar", "procurar corromper". É o mesmo verbo utilizado para descrever a ação do diabo na tentação de Jesus no deserto (cf. Mc 1,13). Os fariseus agem como inimigos de Jesus buscando um motivo para acusá-lo.
Jesus, que sonda o mais íntimo dos corações e sabe que da parte dos fariseus não há nenhuma intenção sincera a respeito do matrimônio, responde perguntando: "O que Moisés vos ordenou?" (Mc 10,3). Os fariseus dizem que Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio para poder despedir a esposa (cf. Dt 24, 1-4 / Mc 10,4). Contudo, vale ressaltar que o tema é muito complexo e bastante discutido nas escolas judaicas entre os próprios mestres da Lei. Na verdade, não havia um consenso sobre o tema. Enquanto a escola de Hillel ensinava que o divórcio era permitido por qualquer motivo, até em casos insignificantes, a escola de Schammai era mais severa, permitindo o divórcio apenas em virtude de uma razão grave como casos de adultério ou outra falta moral. Uma resposta negativa de Jesus sobre a questão levantada pelos fariseus incorreria em uma interpretação crítica à união de Herodes Antipas, rei da Judeia, com Herodíades, mulher de seu irmão, Filipe (cf. Mc 6,17-18).
Em primeiro lugar, a resposta de Jesus revela aos fariseus que as suas atitudes são um gesto de impiedade: "Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos escreveu este mandamento" (Mc 10,5). Eles sofrem de esclerokardia4, isto é, seus corações estão enrijecidos, duros como as pedras, incapazes de acolher os ensinamentos do Filho de Deus.
Em segundo lugar, Jesus contextualiza o matrimônio na perspectiva do projeto original de Deus e une, numa única sentença, duas citações bíblicas que estão presentes nos dois relatos da criação. Ele diz aos fariseus: "No entanto, desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher (Mc 10,6 / Gn 1,27). Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne" (Mc 10,7 / Gn 2,24). A unidade desses textos mostra que, "homem e mulher, unidos em matrimônio, formam uma unidade corpórea indissolúvel, bem mais forte que os graus de parentesco"5. Jesus conclui o diálogo afirmando o projeto iniciado na criação: "o que Deus uniu, o homem não separe!" (Mc 10,9). Aqui, observamos "com a oposição Deus homem, que a prescrição de Moisés sobre o divórcio é qualificada como uma norma humana. Deus é apresentado como aquele que une"6, manifestando, portanto, a sua ação de unir o homem e a mulher ao seu plano de amor.
Após o diálogo com os fariseus, em casa, os discípulos retomam o tema do matrimônio com vários questionamentos e Jesus não hesita em responder que tanto o homem como a mulher que se divorciarem do seu cônjuge assumindo uma nova relação cometerá adultério (cf. Mc 10,11-12). "O versículo 12 espelha um costume não judaico (...) Este desenvolvimento da resposta de Jesus está, provavelmente, baseado na legislação romana, onde a mulher podia separar-se do seu marido. Na legislação bíblica, só o homem tinha direito de dar o libelo de repúdio"7. Agora, a responsabilidade é igual para ambos, homem e mulher trazem consigo a missão de construir a comunidade familiar radicada no amor de Deus, presente desde a criação.
O texto evangélico é concluído com o segundo diálogo acerca da apresentação das crianças a Jesus e que os discípulos tentam impedi-las (cf. Mc 10,13). No entanto, eles são repreendidos de forma contundente pelo seu Mestre que lhes diz: "Deixai vir a mim as crianças. Não as proibais, porque o Reino de Deus é dos que são como elas" (Mc 10,14). No tempo de Jesus, sobretudo para a comunidade rabínica, as crianças não eram
consideradas, plenamente, participantes do povo de Israel em razão de não poderem praticar as obras da Lei. Por essa razão, pelos judeus, elas eram excluídas do Reino de Deus. Seguindo esse modo de pensar, os discípulos de Jesus julgam as crianças sem condições para seguir o Senhor. É nesse momento que Jesus, em forma solene, proclama: "Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele" (Mc 10,15). As crianças acolhidas por Jesus e declaradas por Ele como condição para entrar no Reino, tornam-se uma espécie de contraposição com o orgulho e a esclerokardia dos fariseus. Diferente deles, as crianças possuem um coração dilatado para acolher o abraço de Cristo que as abençoa com todo o seu amor (cf. Mc 10,16). Afinal, o discípulo de Jesus precisa entender que a posse do Reino de Deus não é uma garantia determinada pelas obras da Lei. Para Marcos, essa perícope tem uma grande importância, a qual "pretende mostrar como o discípulo precisa entender a si mesmo. Ele tem que estar livre de pretensões egoístas; diante de Deus, ele tem que ser como uma criança. Pois somente dessa maneira poderá amar os seus semelhantes"8. Não podemos interpretar o Reino de Deus apenas como um lugar físico. Ele é, acima de tudo, uma pessoa: é o Cristo, ofertado aos homens e mulheres como um dom gratuito do Pai. Somente quem tiver um coração aberto e disponível para acolher os seus ensinamentos será capaz de recebê-lo como um dom pascal.
Caríssimos irmãos e irmãs, nessa celebração, peçamos a Deus por todas as famílias que sofrem pela separação de seus cônjuges. A vida de um casal, do início ao fim, é marcada por muitos desafios e o maior deles é a renúncia que precisam fazer a fim de que vivam uma relação de comunhão e não de isolamento. A infidelidade no matrimônio não começa quando se peca com um terceiro, mas sim quando o esposo e a esposa não olham mais para o seu cônjuge como um dom, como uma presença gratificante de Deus. Conforme assevera o Apóstolo Paulo, o amor conjugal deve encontrar seu fundamento na mesma relação de amor que o Cristo tem com a sua esposa, a Igreja. Na carta aos Efésios, ele diz: "Vivei no amor, como Cristo nos amou e se entregou a si a Deus por nós. Como a Igreja é solícita por Cristo, sejam as mulheres solícitas em tudo pelos seus maridos. Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e por ela se entregou. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à mulher, e os dois serão uma só carne. Este mistério é grande, e eu interpreto em relação a Cristo e à Igreja" (Ef 5,2a.24-25.31-32). Em oração, supliquemos ao Divino Espírito que o Evangelho, nessa Eucaristia, quebre a nossa esklerocardia, fortaleça o nosso "sim" e revigore o nosso o espírito de sacrifício completando em nós a sua santificação.
Ao nosso Deus toda honra e toda a glória pelos séculos dos séculos.
1. Carta Apostólica Dies Domini, n.25
2. BORTOLINI, J. Roteiros homiléticos, p. 458.
3. RUSCONI, C. Dicionário do Grego do Novo Testamento, p. 364.
4. RUSCONI, C. Dicionário do Grego do Novo Testamento, p. 420.
5. BORTOLINI, J. Roteiros homiléticos, p. 460.
6. GNILKA, J. El Evangelio Según San Marcos, p. 85.
7. BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus - No anúncio e na oração. Ano B. p. 340.
8. GNILKA, J. EL Evangelho Según San Marcos, p.94
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