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Pe. Eufrázio - 2º Domingo do Tempo Comum - Ano C


Leituras:


1ª Leitura - Is 62,1-5

Salmo - Sl 95,1-2a.2b-3.7-8a.9-10a.c (R. 1a.3b)

2ª Leitura - 1Cor 12,4-11

Evangelho - Jo 2,1-11


Celebramos o Domingo, dia em que o Cristo inaugurou a nova criação e nos resgatou das sombras da morte a fim de experimentarmos a paz que é fruto do seu Espírito. Essa paz que nós pedimos a Deus na oração coleta, nós a experimentamos quando os nossos corações tornam-se dóceis à escuta da Palavra de Deus.


Ouvimos na primeira leitura uma perícope que pertence ao Trito-Isaías1 que nos remete ao período pós-exílico quando alguns israelitas, repatriados para Jerusalém, encontraram uma cidade destruída pelo Império Babilônico. Em todos os lugares, era possível observar as marcas da devastação da cidade santa: Jerusalém tornou-se o retrato da viúva que ficou desamparada, resultado das suas infidelidades à Aliança, sobretudo, a idolatria aos deuses estrangeiros. Retornando aos poucos, os israelitas que foram humilhados pelo exército de Nabucodonosor, rei da Babilônia, aguardavam a restauração do Templo e a reconstrução de uma nova Jerusalém.


O texto que ouvimos na liturgia, é uma espécie de poema nupcial. Em tom matrimonial, o profeta apresenta a nova relação entre Deus e o seu povo. Depois de ter realizado a sua justiça em favor dos seus filhos, o Senhor não permaneceu em silêncio, pois o seu amor por Jerusalém ressoa fortemente. Por intermédio do profeta, Ele diz: "Por amor de Sião não me calarei, por amor de Jerusalém não descansarei, enquanto não surgir nela, como um luzeiro, a justiça e não se acender nela, como uma tocha, a salvação" (Is 62,1).


Repatriando o seu povo, Deus fez prevalecer a sua justiça concedendo-lhe experimentar a sua vitória. Por essa razão, as nações testemunharão que o Senhor socorreu o seu povo, os reis verão a sua glória e sua cidade receberá um novo nome proclamado pela boca de seu próprio Deus (cf. Is 62,2). As altas torres construídas em Jerusalém serão como uma coroa de glória na mão do Senhor. Esse amor divino que rejuvenesce a relação entre o Senhor e o seu povo é capaz de restabelecer a sua união e de transformar a "esposa" infiel num diadema real nas mãos de Deus (cf. Is 62,3). Essas imagens evocam uma nova relação entre Deus e Israel. Tal como o esposo ama e protege a sua esposa, assim o Senhor age com o seu povo, isto é, manifesta-lhe todo o seu amor esponsal. Para Deus, as infidelidades dos israelitas não importam mais. Ele não guardará em seu coração as atitudes do seu povo que rompeu com a sua Aliança. Seu amor é tão forte que refaz com Jerusalém uma nova relação. Por isso, Ele mesmo testemunha sobre a sua "cidade-noiva", dizendo-lhe: "Não mais te chamarão Abandonada, e tua terra não mais será chamada Deserta; teu nome será Minha Predileta e tua terra será a Bem-Casada, pois o Senhor agradou-se de ti e tua terra será desposada" (Is 62,4). Depois de realizar o "casamento" com sua "cidade-noiva", todo o povo de Deus, na imagem de Jerusalém, experimentará as núpcias com o seu Senhor que expressam os sinais de uma nova vida reconstruída pelo seu amor. Com tom amoroso, Deus declara para Jerusalém: "Assim como o jovem desposa a donzela, assim teus filhos te desposam; e como a noiva é a alegria do noivo, assim também tu és a alegria de teu Deus" (Is 62,5).


Esse tom matrimonial que expressa a relação entre Deus e Israel é prolongado na leitura do Evangelho dessa liturgia, um texto conhecido como as "Bodas de Caná" (Jo 2,1-11). Nele, João tem como objetivo mostrar o primeiro sinal de Jesus que, dentre outros sinais, indica uma ação simbólica que convida o leitor à uma realidade mais profunda. Segundo E. Bouzon, o relato é muito conciso e pode ser meditado em três cenas distintas: a primeira, Maria e Jesus (cf. Jo 2,1b-5); a segunda, Jesus e os servos (cf. Jo 2,7-8); a terceira, o mestre-sala e o noivo (cf. Jo 2,10). "A primeira e a segunda cenas estão ligadas entre si pelo tema da preocupação de Maria. A ordem de Jesus aos servos liga a segunda com a terceira cena"2.


Em nosso lecionário, foi omitida a expressão "No terceiro dia" que dá início ao texto evangélico que escutamos. De Jo 1,19 a 2,11, o evangelista organizou os relatos situados dentro de um quadro que dura uma semana, contados quase dia por dia3. Aqui, o terceiro dia corresponde a "dois dias depois do quarto dia", ou seja, após o encontro com Filipe e Natanael (cf. Jo 1,43-51). Desse modo, observamos que as "Bodas de Caná", no sexto dia, encerram a semana de atividade de Jesus e, nelas, de modo prefigurado, Ele revela a sua glória. Fazendo uma alusão ao livro Gênesis, no sexto dia foi criada a humanidade. Assim, o episódio das "Bodas de Caná" é o retrato antecipado da nova humanidade inaugurada por Jesus. "De fato, duas ideias básicas, tiradas do Antigo Testamento, estão sempre presentes no Evangelho de João: aliança e criação. Jesus inaugura a Nova Aliança e dá início à Nova Criação. No sexto dia (Bodas de Caná) temos, portanto, o retrato da nova humanidade"4.


Na primeira cena, o evangelista destaca a presença de Maria em diálogo com seu Filho. E. Bouzon assevera que, conforme o costume judaico, "a festa de casamento de uma noiva virgem durava uma semana e era consumido muito vinho"5. Diante de uma situação difícil, vivida pelo noivo ao saber que o vinho havia terminado quando a festa estava em seus últimos dias, Maria interpela Jesus mostrando a angústia dos noivos, dizendo-lhe: “Eles não têm mais vinho" (Jo 2,3). O vinho é um elemento muito precioso para os judeus. Nos textos veterotestamentários, o povo eleito é comparado como uma vinha que Deus escolheu e cultivou com todo o seu amor (cf. Jr 2,21; 12,10). Como ouvimos na primeira leitura, vale ressaltar que, diversas vezes, a relação de Deus com o seu povo é comparada com às alegrias e aos dramas de um casamento. Igualmente, podemos observar nesse texto evangélico. Após ouvir a preocupação de Maria, Jesus questiona a interpelação de sua mãe (cf. Jo 2,4a) e lhe diz que a sua hora ainda não chegou (cf. Jo 2,4b).


Muito mais do que um elemento cronológico, a "hora de Jesus" é um registro próprio do Evangelho de João e marcada por uma densidade teológica peculiar do evangelista. O termo "hora" no Evangelho joanino está em estreita relação com a morte do Senhor (cf. Jo 7,30; 8,20) e com a sua glorificação (cf. Jo 12,23.27.31-32; 13,31; 17,1-2). Na festa de casamento em Caná, Jesus realiza uma antecipação daquilo que Ele manifestará por meio da sua morte na cruz. No final dessa primeira cena, Maria diz aos que estavam servindo: "Fazei o que Ele vos disser" (Jo 2,5). Diante dessa fala, conseguimos contemplar duas imagens bíblicas nas quais a mãe de Jesus tem um forte protagonismo: mulher de fé inquebrantável (cf. Lc 1,38.45), disponibilidade e generosidade para socorrer o próximo (cf. Lc 1,39.56). Sua resposta aos que serviam vinho prepara o ambiente para a ação de Jesus.


A segunda cena é antecipada pela informação de que naquela festa de casamento tinham seis talhas de pedra, cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros e estavam ali para a purificação, conforme o costume dos judeus (cf. Jo 2,6). Em seguida, "Jesus disse aos que estavam servindo: 'Enchei as talhas de água'. Encheram-nas até a boca. Jesus disse: 'Agora tirai e levai ao mestre-sala'. E eles levaram. O mestre-sala experimentou a água, que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois eram eles que tinham tirado a água" (Jo 2,7-9).


Aqui, existem vários elementos de profunda reflexão. Por isso, ao levar em consideração a linguagem matrimonial para descrever a relação entre Deus e o seu povo, nas Sagradas Escrituras, o casamento alude à Aliança.


Nos textos proféticos, ser infiel à Aliança de Deus equivale ao "adultério" e à "prostituição". Foi dessa forma que Israel se comportou em relação ao seu Criador-Libertador. As talhas de pedra descritas por João pela sua quantidade (seis), simbolizam tanto a incompletude como a sua imperfeição. Ao afirmar que as talhas são de pedra, elas evocam as tábuas de pedra da Lei do Sinai (cf. Ex 24,12) e os corações de pedra dos israelitas (cf. Ez 36,26). A Antiga Lei parece ter caducado e os ritos de purificação que a sustentavam não são mais essenciais para aqueles que desejam unir-se em "matrimônio" com o Senhor. As talhas vazias representam a esterilidade dos ritos antigos que não serviam mais para unir o homem a Deus, ao contrário, afastavam-no e tornavam a criatura cada vez mais distante do seu Criador. Os serventes, obedecendo a ordem de Jesus para que enchessem as talhas de água e "a observação de que eles as encheram até à borda é importante para mostrar a riqueza do dom de Jesus"6. O vinho que antes faltava, agora transborda. A Antiga Lei não consegue conter a riqueza e a profundidade da Nova Lei que é o amor derramado nos corações de todos aqueles que crerem no Filho de Deus. Como diziam os Padres da Igreja primitiva: "A água da lei é transformada no vinho inebriante da graça".


Na terceira e última cena, podemos observar que a grande quantidade de vinho e a sua qualidade irreconhecível por parte do mestre-sala que se dirige ao noivo (cf. Jo 2,10), "simbolizam a abundância da graça de Deus que surgiu no meio da festa dos homens; festa 'sem vinho!' (...) O milagre não é feito para que bebam vinho; mas para que, bebendo, creiam"7. Assim como as núpcias equivalem ao símbolo da bondade salvífica de Deus, o vinho é o símbolo do amor e da alegria, conforme recorda o autor sagrado: "Teus amores são melhores do que o vinho" (cf. Ct 1,2); e "tua boca é vinho delicioso que se derrama na minha molhando-me os lábios e os dentes" (cf. Ct 7,10). O vinho providenciado por Jesus em Caná é o sinal da sua chegada messiânica que será revelada plenamente na sua cruz. Nela, ferido de amor pelo seu novo povo, derramou, do seu lado aberto, o vinho da salvação reconciliando, em si mesmo, todo o gênero humano com o Pai. Dessa maneira, João tem como finalidade destacar a pessoa de Jesus como o verdadeiro noivo que, por meio do seu amor pascal, desposará a nova humanidade inaugurada pela sua Nova Aliança.


Irmãos e irmãs, tal como o povo de Israel sofreu o exílio na Babilônia em virtude das suas infidelidades à Aliança, também sofremos as mesmas experiências no exílio desse mundo. Se no Antigo Testamento, o Senhor caminhava com os hebreus dando-lhes o alimento, a água, a Lei e, com ela, a Aliança, no Novo Testamento, Cristo caminha lado a lado com os homens dando-lhes, não o maná, mas o seu próprio corpo glorioso como alimento, antecipando, assim, a eterna comunhão com o Pai; igualmente, não lhes dá água, mas o vinho da divina mesa que é o seu sangue; não lhes dá a "lei da letra", mas a graça do seu amor e, com ela, não acrescenta uma aliança a mais, mas realiza a única e definitiva Aliança. Peçamos ao Cristo que olhe para as nossas indigências e derrame sobre elas o vinho curativo do seu Espírito para que possamos celebrar todos os dias a festa da nossa existência e cantar ao Senhor Deus um canto novo (cf. Sl 95,1a). Vindo em nosso socorro, o Filho de Deus opera os seus sinais para que a sua glória se manifeste em nós (cf. Jo 2,11) e, como seus discípulos, possamos crer que Ele é o verdadeiro "esposo" de nossas vidas.


Rezemos pelas famílias a fim de que nunca lhes falte o vinho do amor, da fé, da esperança, da oração, do perdão, da alegria, da humildade, do diálogo, do silêncio, do otimismo, da coragem e da solidariedade. Ainda que esses "vinhos" faltem em nossas casas, o Senhor nos recorda que temos Maria que intercede por nós e continua dizendo ao seu Filho: "Eles não têm mais vinho" (Jo 2,3). Acerca disso, K. J. Romer, em tom de oração, diz: "Sobre tantos cristãos consagrados no sacramento do matrimônio, sobre tantos religiosos que já perderam o ardor da primeira vocação, sobre tantos sacerdotes que já esqueceram o estremecer do dia do chamado feito por Cristo e pela Igreja, Maria sempre intercede. Senhor, restituí-nos o vinho generoso de vossa inefável presença! Maria, mãe do Senhor e nossa Senhora, vigiai sobre a festa de nossa história, para que jamais chegue a terminar o vinho do divino encanto"8. Que nessa Eucaristia, bebendo do vinho das Sagradas Escrituras e meditando-as em nossos corações, possamos, "embriagados" no Espírito, fazer tudo aquilo que o Senhor nos disser (cf. Jo 2,5).


Ao nosso Deus toda honra e toda a glória pelos séculos dos séculos.

 
  1. O livro do profeta está dividido em três blocos: 1º) Capítulos 1-39: Proto-Isaías ou Primeiro Isaías: antes do exílio do povo na Babilônia. 2º) Capítulos 40-55: Dêutero-Isaías ou Segundo Isaías: período do exílio. 3º) Capítulos 56-66: Trito-Isaías ou Terceiro Isaías: período do pós-exílio.

  2. BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus - No anúncio e na oração. Ano C. p.175.

  3. 1º dia (Jo 1,19-28); 2º dia (Jo 1,29-34); 3º dia (Jo 1,35-42); 4º dia (Jo 1,43-51); 6º dia (Jo 2,1-11).

  4. BORTOLINI, J. Roteiros Homiléticos, p. 579.

  5. BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus - No anúncio e na oração. Ano C. p.175.

  6. BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus - No anúncio e na oração. Ano C. p.176.

  7. BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus - No anúncio e na oração. Ano C. p.178.

  8. BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus - No anúncio e na oração. Ano C. p.179.


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