"A justiça andará na sua frente e a salvação há de seguir os passos seus." (Sl 84,14)
Leituras:
1ª Leitura - Is 40,1-5.9-11
Salmo - Sl 84,9ab-10.11-12.13-14 (R.8)
2ª Leitura - 2Pd 3,8-14
Evangelho - Mc 1,1-8
Reunidos para celebrar nesse domingo o mistério da nossa fé, isto é, o Cristo crucificado-ressuscitado, pedimos ao Pai que nenhuma atividade terrena nos impeça de corrermos ao encontro do seu Filho. No entanto, para isto efetivamente acontecer, é importante pedirmos que Ele nos conceda o dom da sabedoria a fim de que, instruídos por ela, os nossos corações não se prendam às coisas desse mundo e possamos, assim, participar da sua vida em plenitude. Uma das maneiras de nos deixarmos guiar pela sabedoria, dom do Espírito, é escutando em oração a Palavra de Deus.
Na primeira leitura que ouvimos nessa liturgia, estamos tendo contato com o início do "livro da consolação de Isaías"[1]. O profeta é enviado pelo Senhor para anunciar "ao coração de Jerusalém". Esse anúncio revela que Deus não abandonou o seu povo à sorte do exílio na Babilônia; mas, ao contrário, a expressão "falai ao coração de Jerusalém" (Is 40,2) implica a relação amorosa que Deus tem com os seus filhos fazendo crescer neles a sua ternura. Mas o que Deus quer falar ao coração dos habitantes de Judá que estão exilados? Ele quer anunciar o seu perdão mostrando que o tempo naquele lugar de cativeiro vai terminar brevemente. As suas culpas foram redimidas e a sua servidão naquela terra de exílio já pagou o preço dobrado das infidelidades à Aliança, razão pela qual tiveram que suportar o escárnio dos opressores como recorda o salmista: "Junto aos rios de Babilônia nos sentávamos chorando com saudades de Sião. Nos salgueiros por ali penduramos nossas harpas. Pois foi lá que os opressores nos pediram nossos cânticos; nossos guardas exigiam alegria na tristeza: 'cantai hoje para nós algum canto de Sião!' Como havemos de cantar os cantares do Senhor numa terra estrangeira?" (Sl 136 [137],1-4). O sofrimento daquele lugar será, certamente, um forte aprendizado que tornarão os judeus aptos para retornarem à cidade santa e reconstruir, portanto, o templo, a cidade e suas vidas.
Para que essa reconstrução seja feita, terão que acolher a voz que grita forte: “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas" (Is 40,3-4). A alusão feita ao deserto mostra que o povo de Deus terá que fazer novamente a experiência de fé tal como fizeram no primeiro êxodo quando foram escravos no Egito e libertados do domínio do Faraó. No deserto, os hebreus iniciaram sua experiência de um povo livre, pois, foi lá que celebraram a páscoa conforme Deus havia ordenado (cf. Ex 5,1; 7,16). Agora, mais do que uma caminhada geográfica, os judeus exilados na Babilônia são convidados a fazer uma caminhada espiritual renunciando o egoísmo e a infidelidade que viviam em relação à Aliança para viver novamente a comunhão com o Senhor. Ele vais mostrar aos seus filhos que a sua promessa não falhará, pois manifestará o poder de seu braço conquistando a vitória do retorno a Jerusalém. Será como um pastor que, apascentando o seu rebanho com a força do seu braço, carregará em seu colo as suas ovelhas (cf. Is 40,10-11). Tal imagem no último versículo insinua quem eram os judeus que voltaram para a cidade santa: são pessoas enfraquecidas e debilitadas, ou seja, é o resto de Israel. Todavia, elas estão cheias de esperança da vida nova que experimentarão. À sua frente está Aquele que conduz à fonte da liberdade e da vida, tornando uma realidade o que se canta no salmo: "a justiça andará na sua frente e a salvação há de seguir os passos seus". (Sl 84,14).
O Evangelho desse domingo pode ser dividido em duas partes: a primeira, uma introdução na qual o texto diz: "Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus". Este versículo mostra que o conteúdo da Boa-Nova é o chamado que Deus faz à salvação pela fé no seu Filho, o Cristo, verdadeiro Messias (cf. Mc 1,1). Em seguida, o texto apresenta algumas citações veterotestamentárias (Ml 3,1// Ex 23,20; Is 40,3) com a finalidade de apresentar a figura de João Batista e que, nele, tais oráculos se cumprem como o precursor de Jesus que prepara os seus caminhos (cf. Mc 1,2-3). Na segunda parte (Mc 1,4-8) observamos explicitamente a missão do profeta João Batista. É nesta parte que nos deteremos para nossa reflexão.
João Batista é apresentado geograficamente no deserto pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados. Nesse lugar acorriam todos da região da Judéia e, também, os habitantes de Jerusalém para confessarem seus pecados a fim de serem batizados no rio Jordão. A expressão "batismo de conversão" encontra-se no texto grego como báptisma metanoías. Metanóia, derivado do verbo metanoéo[2], significa "mudar de opinião", "mudar de pensamento, mentalidade", "converter-se", "arrepender-se". No Antigo Testamento a mesma palavra corresponde ao substantivo teshuvá, derivado do verbo shuv, termo hebraico que significa “voltar”. A teshuvá é, portanto, uma “volta para Deus”, um retorno para o caminho de Deus do qual muitas vezes nos afastamos. Assim, o Evangelho de hoje nos aponta para uma direção: a conversão da nossa vida que, necessariamente, passa pelo despojamento do homem velho que habita em nós escolhendo um novo caminho para acolher o Senhor que vem. "A metanóia implica numa mudança interior profunda que resulta em uma conversão a um novo modo de vida. Essa metanóia do homem tem como resposta da parte de Deus, o perdão dos pecados. A aceitação do batismo implicava, sem dúvida, da parte do homem, o reconhecimento de seu estado pecador diante de Deus"[3].
João Batista, apresentado pelo evangelista Marcos como um asceta do deserto pela forma como se veste e como se alimenta, é também caracterizado como um profeta que anuncia a vinda do Cristo. Ele diz: "Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo" (Mc 1,7-8). Esta é a missão do precursor: preparar os homens e as mulheres para que, batizados com água pelo profeta manifestando o arrependimento de seus corações, possam acolher Aquele que é mais forte que João, isto é, o Verbo de Deus que vem para batizar no seu Espírito. Na literatura profética, a fortaleza, dom do Espírito, e o "batismo no Espírito" eram prerrogativas próprias do Messias (cf. Is 9,6; 11,2). A força de Deus será manifestada através do seu Filho que derramará o seu pneuma inaugurando, dessa forma, um novo povo.
Caríssimos irmãos e irmãs, a liturgia de hoje nos apresenta uma esperança escatológica que é própria do tempo do advento. No Evangelho que escutamos no último domingo no qual Jesus nos exortava dizendo: Cuidado! Ficai atentos, porque não sabeis quando chegará o momento" (Mc 13,33), ainda continua fazendo ressonância em nós. Hoje, dia do Senhor, a Palavra de Deus, na força do Espírito, chama-nos a atenção para a nossa conversão que deve ser um exercício diário, de tal modo que, com os corações transfigurados, possamos acolher o Cristo que é o grande advento do Pai na vida do seu novo povo, a Igreja. Um dos primeiros passos para a nossa conversão é aquele no qual o egoísmo que nos acompanha gerando indiferença à dor do próximo cede espaço para a vida de comunhão gerando o amor pascal na vida do nosso irmão. Desse amor-ágape nasce em cada homem e mulher um novo êxodo interior, cuja voz diz: "Maranatá", "Vem, Senhor Jesus!" (Ap 22,20). Que nesta Eucaristia, e ao longo de toda a semana, o Senhor possa acolher as nossas humildes preces e oferendas, pois como não podemos invocar os nossos méritos, venha em nosso socorro a sua misericórdia[4].
Ao nosso Deus toda honra e toda a glória pelos séculos dos séculos.
[1]O livro do profeta está dividido em três blocos: 1º) Capítulos 1-39: Proto-Isaías ou Primeiro Isaías: antes do exílio do povo na Babilônia. 2º) Capítulos 40-55: Dêutero-Isaías ou Segundo Isaías: período do exílio. 3º) Capítulos 56-66: Trito-Isaías ou Terceiro Isaías: período do pós-exílio.
[2] RUSCONI, C. Dicionário do Grego do Novo Testamento, p. 305. A palavra "metanóia” é a junção de duas palavras grega: a preposição meta que significa "mudança" e nous (lê-se "nús") que significa pensamento.
[3] BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus - No anúncio e na oração. Ano B. p.17.
[4] Cf. Oração sobre as oferendas - 2º DTA, ano B.
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