Homilia - Pe. Eufrázio - 29º Domingo do Tempo Comum - Ano A
- paroquianscabeca
- 21 de out. de 2020
- 7 min de leitura
"Eu sou o Senhor, não há outro." (Is 45,5)
Leituras:
1ª Leitura - Is 45,1.4-6 Salmo
Sl 95,1.2a.3.4-5.7-8.9-10.a.c (R.7ab)
2ª Leitura - 1Ts 1,1-5b
Evangelho - Mt 22,15-21

Reunidos como assembleia do Ressuscitado, pedimos a Deus, na oração coleta, que Ele nos conceda a graça de estar sempre ao seu dispor e servi-lo de todo coração. Para que esse pedido nos seja atendido, precisamos aprender com a Igreja, mestra da escuta, em acolher a Palavra e deixar-se moldar na imagem do Cristo, seu esposo. A esse respeito, disse o Papa Bento XVI: "Receber o Verbo significa deixar-se plasmar por Ele, para se tornar, pelo poder do Espírito Santo, conforme a Cristo, ao 'Filho Único que vem do Pai' (Jo 1,14). É o início de uma nova criação: nasce a criatura nova, um povo novo".1 Para servir a Deus de todo o coração é necessário que estejamos atentos à sua voz para poder respondêlo: "Fala, pois, teu servo ouve" (1Sm 3,10).
A primeira leitura que escutamos nesse domingo tem como contexto histórico o profeta, conhecido como Dêutero-Isaías2 , que vive exilado junto aos seus irmãos israelitas. Sua missão é de "alimentar", com a sua palavra, a esperança em Deus na vida do povo eleito que sofre desterrado na terra estrangeira e sonha com o seu retorno para a cidade santa, Jerusalém.
No mesmo período em que os israelitas vivem exilados na Babilônia, no cenário político internacional, surge na Pérsia um novo rei chamado Ciro. Este, por sua vez, desponta conquistando diversos territórios estrangeiros que ficam sob o seu domínio e um desses territórios foi a Babilônia. Dessa forma, os judeus exilados começam a ver que o sonho de retornar para Jerusalém está próximo de se tornar uma realidade. Todavia, surge uma dúvida da parte dos israelitas: A quem deve ser atribuída a libertação quando ela acontecer? Ao Deus de Israel ou ao deus de Ciro, rei da Pérsia?
O profeta não hesitará em responder àqueles que trazem consigo esta dúvida. O Deus Criador, que libertou o seu povo da escravidão do Egito e em seguida com fez uma aliança com os hebreus, é quem age novamente na história realizando uma nova libertação. Entretanto, o profeta nos mostra com o oráculo de investidura real que o escolhido de Deus não é um rei israelita, mas um rei estrangeiro que Ele elegeu para ser o instrumento de libertação do seu povo. Deus escolheu um pagão para realizar a sua justiça derrotando o orgulho dos babilônios e conceder a liberdade aos israelitas. É Importante lembrar que no exílio não havia Templo e, dessa maneira, o povo eleito não realizava o seu culto enquanto religião oficial. Contudo, para Deus isso não era um impedimento para que Ele atuasse na história do seu povo intervindo com o seu novo êxodo.
Ciro é aquele sobre quem Deus lançou o seu olhar de eleição e pelo Senhor foi ungido. Em outras palavras, afirmar que Ciro é o "ungido" de Deus, significa dizer que tal rei foi investido do Espírito do Senhor para realizar a libertação dos judeus exilados na Babilônia, conforme diz o profeta: "Tomei-o pela mão para submeter os povos ao seu domínio, dobrar o orgulho dos reis, abrir todas as portas à sua marcha, e para não deixar trancar os portões" (Is 45,1). Importa-nos saber que Deus não esqueceu do seu povo com quem Ele estabeleceu seu pacto de eterno amor e que, "por causa de meu servo Jacó, e de meu eleito Israel" (Is 45,4), escolheu Ciro chamando-o pelo nome, reservando-o para esse momento histórico-salvífico. Ainda que Ciro, rei da Pérsia, não conheça o Deus de Israel, por Ele foi ungido como seu guerreiro a fim de que todos os povos tenham o conhecimento de que o Deus dos israelitas é o Senhor e que "não existe outro" (Is 45,5), como afirma o profeta: "Todos saibam, do oriente ao ocidente, que fora de mim outro não existe. Eu sou o Senhor, não há outro" (Is 45,6).
No Evangelho desse domingo, após o diálogo de Jesus com os sacerdotes e anciãos do povo narrando-lhes as três parábolas que mostravam que o Filho de Deus "veio para o que era seu, mas os seus não receberam (Jo 1,11), escutamos que os fariseus arquitetam uma armadilha para Jesus a fim de terem motivo para acusá-lo. No texto grego está escrito pagideúsin do verbo pagideúo3 que se traduz como "pegar com o laço" e, geralmente, utilizado para pegar os animais. Assim, os fariseus enviam seus discípulos ao lado de alguns partidários de Herodes para irem ao encontro de Jesus. Elogiando-lhe pela fidelidade na interpretação da Lei, dizem: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências" (Mt 22,16). De fato, o elogio revela uma verdade sobre aquele que é o Divino Mestre. Porém, tal elogio é acompanhado da intenção de colocar Jesus em apuros em qualquer resposta que Ele desse quando foi perguntado: "Dize-nos, pois, o que pensas: É lícito ou não pagar imposto a César?" (Mt 22,17). Jesus, a Palavra encarnada do Pai, que sonda o mais íntimo dos corações e de longe penetra os pensamentos mais ocultos (cf. Sl 138[139],1-2), percebendo a maldade dos corações de seus interlocutores, diz com veemência: "Hipócritas! Por que me preparais uma armadilha?" (Mt 22,18). No texto grego temos a expressão peiradzete do verbo peirádzo4 que significa "tentar", "desafiar", "pôr à prova", "procurar corromper". Tal verbo é descrito pelo evangelista Mateus no episódio em que o diabo põe à prova Jesus que retirou-se no deserto durante quarenta dias (cf. Mt 4,1). As atitudes daqueles que estão planejando uma cilada para o Filho de Deus são ações que se assemelham às atitudes do diabo. Suas ações diabólicas estão disfarçadas pelos "paramentos de religião" que usam. Por outro lado, Jesus reage pedindo que apresentem a moeda do imposto que traz a inscrição da imagem de César e pergunta-lhes: “De quem é a figura e a inscrição desta moeda?” (Mt 22,20). Ao responderem que na moeda está a imagem e a inscrição de César, o Senhor lhes diz: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 20,21). Para os israelitas, a imagem do imperador nas moedas era uma transgressão da Lei, especificamente do primeiro mandamento que diz: "Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra" (Ex 20,4). Da mesma maneira era, também, uma transgressão em não reconhecer a Deus como único Senhor (cf. Dt 6,4).
Diante da emboscada que tentaram armar para Jesus, Ele não se mostra como alguém que está alienado das suas obrigações em relação ao poder temporal. Jesus percebe-se como um cidadão que, a partir do seu exemplo, deve contribuir para o bem comum da comunidade na qual está inserido. Essa é a razão da sua expressão "dar a César o que é de César". Homens e mulheres inseridos numa sociedade, não deveriam se olhar como coadjuvantes da história. Ao contrário, criados por Deus, homens e mulheres são protagonistas de uma sociedade que deve ter o Cristo como mestre e, a seu exemplo, estarem no mundo com a missão de transformar todo e qualquer sistema que gera injustiça e desordem. Ora, se nas moedas romanas estavam inscritas a imagem de César a fim de manifestar a sua soberania político-militar sobre a Palestina, Jesus nos ensina que o mais importante é que os homens e as mulheres, reconhecendo o seu Pai como único Senhor e que "não existe outro" (Is 45,5), percebam que neles foi inscrita a imagem de Deus como nos recorda o autor sagrado: "Deus disse: ‘façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança’… Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus" (Gn 1,26-27). Nisso consiste "dar a Deus o que é de Deus", ou seja, o homem que pertence ao Senhor, a Ele deve se entregar de forma confiante e deixar que o seu Espírito o transfigure numa hóstia de louvor. "É verdade, o universo tem como que a inscrição de Deus, pertence, portanto, a Ele; e a efígie5 de Deus é o homem. Quando os homens aprenderem isto, não abolirão a ordem do mundo, porém, vão preenchê-la com tamanho amor que as leis de toda espécie de coerção tornar-se-ão incapazes de conter a virtude da Páscoa plena"6
Caríssimos irmãos e irmãs, ao celebrar nossa páscoa semanal, Cristo, com a sua Palavra, quer iluminar o nosso interior, cujas trevas, muitas vezes, nos dominam. Quando podemos saber que nossas trevas têm poder sobre nós? Quando não nos reconhecemos, e também o próximo, como imagem e semelhança de Deus ferindo o amor do Pai em nós e nosso irmão. Quando, também, olhamos para o outro, nosso próximo, e condenamos com os nossos "olhares míopes" vendo-o apenas como um inimigo e uma ameaça em nossas vidas, buscando, a todo custo, eliminá-lo. Agindo dessa maneira, as trevas demonstram-se enraizadas em nossos corações parecendo não haver espaço para a luz de Cristo. Mas isso não deve ser um motivo para nos desanimar e, menos ainda, de desistir quando nos sentimos frustrados com tantas provações que sofremos. Afinal, em Cristo, as palavras do salmista encontram seu pleno sentido quando ele diz: "mesmo as trevas para vós não são escuras, a própria noite resplandece como o dia e a escuridão é tão brilhante como a luz" (Sl 138 [139],12). Reconciliados com as nossas trevas, deixemos ecoar em nós a Palavra do apóstolo Paulo que disse aos fiéis de Tessalônica que o Evangelho não chegou a eles apenas por meio de palavras, "mas também mediante a força que é o Espírito Santo; e isso, com toda a abundância" (1Ts 1,5b). Portanto, que o mesmo Espírito, iconógrafo do Pai, possa inscrever continuamente em nós o rosto de Cristo a fim de manifestar a luz da sua beleza para todos aqueles que vierem ao nosso encontro.
Ao nosso Deus toda honra e toda a glória pelos séculos dos séculos.
1 Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini, 50.
2 O Dêutero-Isaías ou Segundo Isaías está situado, historicamente, no período do exílio e presente nos capítulos 40-55, também conhecido como "Livro da Consolação de Israel".
3 RUSCONI, C. Dicionário do Grego do Novo Testamento, p. 347.
4 RUSCONI, C. Dicionário do Grego do Novo Testamento, p. 364.
5 Efígie era a imagem de uma pessoa cunhada numa moeda.
6 BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus - No anúncio e na oração. Ano A. p.363.
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