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Homilia Pe. Eufrázio - 24º Domingo do Tempo Comum - Ano A

"Não devias tu também ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?" (Mt 18,33)

Leituras:

1ª Leitura - Eclo 27,33-28,9

Salmo - Sl 102,1-2.3-4.9-10.11-12 (R.8)

2ª Leitura - Rm 14,7-9

Evangelho - Mt 18,21-35


O domingo, dia da ressurreição do Senhor, todos os cristãos celebram o dom da fé. Acerca desse dia salvífico, dizia São João Paulo II: "O domingo revela-se como o dia da fé por excelência. Nele, o Espírito Santo, 'memória' viva da Igreja (cf. Jo 14,26), faz da primeira manifestação do Ressuscitado um evento que se renova no 'hoje' de cada um dos discípulos de Cristo. Encontrando-O na assembleia dominical, os crentes sentem-se interpelados como o apóstolo Tomé: "Chega aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente" (Jo 20,27). Sim, o domingo é o dia da fé.¹ Dessa forma, com esta exortação do Santo Pontífice, somos convidados em deixar que o Espírito de Deus, por meio da Palavra do Ressuscitado, toque as feridas da nossa incredulidade e do nosso egoísmo transfigurando-nos numa hóstia de louvor e de compaixão.


No Evangelho deste domingo, que é o coração da liturgia da Palavra, Mateus dá continuidade ao discurso eclesiástico de Jesus que trata sobre as relações fraternas. Se no domingo passado meditamos sobre o perdão exercido dentro da comunidade cristã (cf. Mt 18,15-20), hoje o texto bíblico nos convida a meditar o perdão de modo pessoal em relação àqueles que nos ofendem (cf. Mt 18,21-35). O texto evangélico desse domingo consta de uma introdução contendo o questionamento de Pedro (cf. Mt 18,21-22); em seguida, a resposta de Jesus ao seu discípulo, ou seja, a parábola propriamente dita (cf. Mt 18,23-34); por fim, uma conclusão que fala a respeito da forma como o Pai do céu procederá com aqueles que não perdoam de coração (cf. Mt 18,35).


A pergunta que Pedro faz a Jesus acerca de quantas vezes se deve perdoar o irmão que lhe causou algum pecado não é uma pergunta arbitrária. Para os que se julgavam mestres de Israel o perdão era para ser exercido apenas em relação aos membros do povo de Deus. Os inimigos do povo eleito, ou seja, os estrangeiros que investiam guerra contra os israelitas estavam excluídos desse dom. Pedro conhece os ensinamentos de Jesus em relação ao dever de perdoar o próximo conforme apresentado no discurso do sermão da montanha (cf. Mt 5,23-26.38-48). Todavia, Pedro quer que Jesus determine em quantidade numérica quantas vezes esse perdão deve ser executado: "Até sete vezes?" (Mt 18,21). Na cultura semita, o número sete equivale a "totalidade". A resposta de Jesus vai além dessa medida quantitativa: "Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete" (Mt 18,22). Na reposta de Jesus há, sem dúvidas, uma referência ao canto de Lamec que dizia:


"Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. É que Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes" (Gn 4,23b-24)². Esse canto de vingança mostra como o clima de ódio quase perpétuo entrou no mundo fazendo reinar o pecado na história humana. Porém, o evangelista Mateus quer pôr em relevo a presença de Jesus, cujos ensinamentos revelam o amor misericordioso do Pai, pondo fim a esse clima demasiadamente tenebroso provocado pelo desejo de ódio e vingança ilustrado pelo mundo de Lamec.


A partir dessa resposta de Jesus, Ele mesmo vai ilustrar a sua resposta com uma parábola que podemos contemplar em três cenas. Na primeira cena vemos o patrão que pede a prestação de contas dos seus funcionários. Um desses empregados devia, conforme o texto grego "miríon taláton", ou seja, equivalente a dez mil talentos. Um talento correspondia a seis mil denários. Logo, entende-se que tal empregado deve uma "enorme fortuna" como escutamos na leitura do nosso lecionário dominical, impossível de pagar considerando o que recebia como salário. Não tendo como pagar tamanha dívida, o empregado é sentenciado para ser vendido como escravo juntamente com toda a sua família. Nesse momento observamos as atitudes do empregado diante do seu patrão, isto é, ele cai aos seus pés, encontra-se prostrado e lhe implora suplicando: "Dá-me um prazo e eu te pagarei tudo!" (Mt 18,26). No texto grego encontramos o funcionário que suplica ao seu patrão dizendo: "macrotímeson"³ que significa "tenha paciência!". Tal súplica será realizada e muito além daquilo que o funcionário deseja receber.


Segundo o texto grego, a atitude do patrão é ilustrada pelo verbo "esplanknisteis", derivado do substantivo "esplanknon" que significa "vísceras"4 . O patrão "teve compaixão, soltou o empregado e perdoou a dívida" (Mt 18,27), isto é, o patrão ouviu tudo o que disse aquele que lhe suplica e comoveu-se profundamente a tal ponto de sentir a dor alheia como a sua dor. O patrão colocando-se no lugar do seu empregado manifesta o seu amor visceral perdoando-o. Aquele homem que estava a pouco tempo de ser vendido como escravo, agora é um homem redimido e faz a experiência mais profunda de salvação.


Na segunda cena, paralela à primeira, escutamos que o mesmo empregado que foi redimido, agora tem diante de si um de seus companheiros que lhe deve "ekatón denária", ou seja, apenas cem moedas. Diante do que o empregado devia ao seu patrão, o valor que seu companheiro lhe deve é irrisório. Mas tal valor não é capaz de conter sua raiva a ponto agarrá-lo e sufocá-lo dizendo: "Paga o que me deve" (Mt 18,28). A atitude do companheiro devedor é a mesma do funcionário que devia ao seu patrão. Ele diz: "macrotímeson", ou seja, "tenha paciência", "Dá-me um prazo e eu te pagarei tudo!" (Mt 18,29). No entanto, a atitude do empregado com aquele que lhe devia não foi a mesma atitude manifestada pelo seu patrão quando este sentiu e assumiu a sua dor ouvindo a sua súplica. Ao contrário, o empregado não querendo saber, saiu e mandou que seu companheiro fosse jogado na prisão. Suas atitudes revelam a ingratidão com seu próximo que, devendo menos, não foi alvo do mesmo amor libertador que recebeu do patrão. Seu colega sentenciado à prisão está isento de liberdade e, desta maneira, impossibilitado de pagar a sua dívida. Sofre duplamente: de modo externo, sofre pela dívida monetária que deve; internamente, sofre por não alcançar a paciência que suplicou; menos ainda, o perdão que tanto desejava.


Na terceira cena, escutamos que os demais companheiros vendo tal atitude do empregado estão entristecidos com as imagens que testemunharam e não hesitam em contar ao patrão o que aconteceu. Chamando o empregado, o patrão lhe disse: "Empregado perverso, eu te perdoei toda a tua dívida, porque tu me suplicaste. Não devias tu também ter compaixão do teu companheiro como eu tive compaixão de ti?" (Mt 18,33). O patrão indignado, ordena que tal empregado seja entregue aos torturadores até que sua dívida seja efetuada. Jesus conclui que será dessa forma com a qual o Pai do céu tratará aqueles cujos corações foram alvos da sua misericórdia, mas multiplicaram ódio e intolerância com seu irmão (cf. Mt 18,34-35).


Estimados irmãos e irmãs, nesta liturgia somos exortados a entrar na dinâmica da misericórdia do Pai e manifestá-la em forma de compaixão em relação àqueles que do nosso perdão estão à espera. Quantas vezes desejamos receber de Deus o seu perdão e, com este dom do Ressuscitado, fazermos a experiência de filhos e filhas redimidos, com os corações cheios de paz. Tal perdão nós o recebemos todas as vezes que a Deus suplicamos: "Kyrie, macrotímeson", isto é, "Senhor, tenha paciência comigo". Esta mesma paciência que suplicamos e alcançamos do Pai, retrato da sua misericórdia, o Cristo deseja que também possamos exercê-la em relação àqueles que contra nós se levantaram fazendo-nos o mal. De que modo podemos exercer a paciência de Deus contra estes que nos ofendem? O apóstolo Pedro em sua carta nos responde: "Não pagueis o mal com mal, nem ofensa com ofensa. Ao contrário, abençoai, porque para isto fostes chamados: para serdes herdeiros da bênção" (1Pd 3,9). Não desejar o mal, mas desejar o bem abençoando aqueles que nos ofenderam é a expressão da paciência divina. Quando assim a exercemos, cresce em nós o martírio interior destruindo o velho Adão que nos acompanha, ressuscitando em nossas vidas o testemunho de Cristo, novo Adão.


Para vivermos esta experiência do novo Adão, fruto do perdão, precisamos ter em consideração a disposição de deixar que o Espírito de Deus, através da Palavra eterna do Pai, golpeie o nosso orgulho ferido que sempre tem a tentação de achar que apenas o outro é culpado. Dóceis ao Espírito que nos recorda tudo o que Jesus disse e fez (cf. Jo 14,26), poderemos ver renascer em nós o início de uma vida nova que tem o perdão como um de seus remédios curativos. "Se estamos dispostos a perdoar um irmão, antes temos que nos precaver de considerar a nós mesmos como sendo melhores. Isso porque, uma vez que nos é difícil perdoar, pensamos estar fazendo algo de grandioso quando ultrapassamos o umbral interior e perdoamos o irmão. Mas isso ainda não é o perdão que Cristo exige de nós. Os ditos dos Santos Padres sempre nos advertem que, na disposição para perdoar o outro, não nos elevamos acima do outro irmão (...) Só podemos perdoar quando tivermos reconhecido e confessado nossa própria culpa perante Deus. Mas se, ao contrário, pensamos que apenas o outro é culpado, nosso perdão se transforma em acusação do outro, e não podemos nos admirar se o outro recusar-se a aceitálo. Não é a dureza do seu coração, mas o orgulho de nossa parte, que impede o outro de aceitar o perdão" 5 5 GRÜN, A; RUPPERT, F. Cristo no irmão - o amor ao próximo e o amor ao inimigo na espiritualidade beneditina, p. 57 e 59.


Nesta eucaristia, Jesus recorda que o perdão do Pai é infinito, sem medidas e gratuito. Por isso, se "de graça recebestes, de graça deveis dar" (Mt 10,8). Se de Deus recebemos gratuitamente o seu perdão sem limites, este dom que nos redime também deve ser dispensado a todos aqueles que nos pedem. Afinal, "na mesma medida com que medirdes, vós sereis medidos" (Mt 7,2). Aqui está "pedra" que toca o nosso calcanhar de Aquiles: queremos receber de Deus o seu infinito amor manifestado no seu perdão. Porém, quando diz respeito ao exercício de perdoar o nosso próximo buscamos sempre uma justificativa métrica para não nos expormos ao outro e redimi-lo. Pedir perdão e dá-lo ao nosso irmão que nos ofende, exige uma luta interior contra o nosso homem velho que, residindo em nós, sempre vai dizer que não precisamos passar por tamanha humilhação. Desta maneira, interiormente vamos nos tornando um sepulcro que apenas esconde rancor e raiva, coisas detestáveis, conforme diz o autor sagrado do Eclesiástico (cf. Eclo 27,33). Tal autor nos lembra na primeira leitura que "se alguém guarda raiva contra o outro, como poderá pedir a Deus a cura? Se não tem compaixão do seu semelhante, como poderá pedir perdão dos seus pecados?" (Eclo 28,3-4).


Irmãos e irmãs, da mesma forma que o domingo, nossa páscoa semanal, é o dia da fé por excelência, perdoar também se torna uma atitude de fé. Só perdoa quem tem fé. Assim como a fé, o perdão também é "a garantia dos bens que se esperam" (cf. Hb 11,1), nesse caso, a garantia da vida redimida que o Cristo nos alcançou com o seu mistério pascal. Se "pela fé Abrãao, tendo sido provado, ofereceu Isaac" (Hb 11,17); com o perdão oferecemos o nosso coração ferido. Provados até o fim, imediatamente Deus providencia-nos um coração novo. Se Moisés "pela fé deixou o Egito, sem temer o furor do rei, e resistiu, como se visse o Invisível, e pela fé celebrou a Páscoa e fez a aspersão do sangue para que o Exterminador não ferisse os primogênitos de Israel" (Hb 11,27-28); com o perdão experimentamos a libertação das cadeias provocadas pela raiva e o rancor do Faraó que existe em nós. Ao mesmo tempo celebramos o fruto da obra redentora de Cristo, cujo sangue nos marcou com o seu perdão sem limites protegendo-nos dos nossos inimigos que estão dentro e fora de nós.


Durante essa nova semana que iniciamos, prolonguemos o ato penitencial que costumamos proclamar na celebração eucarística. Supliquemos a Deus que Ele tenha piedade de nós e não desconheceremos que a sua piedade e misericórdia virá em nosso socorro. Resgatados pelo socorro divino, manifestemos também tal resgate àqueles que de nós aguardam a celebração do nosso perdão. Que a oração dominical que o Senhor nos ensinou possa deixar de ser apenas palavras lançadas ao vento quando rezamos. Quando orarmos ao Pai dizendo "perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido", nossos gestos concordem com a nossa voz. Assim sendo, unimos a nossa voz a voz do santo salmista para bendizer a Deus que nos ama, nos perdoa e nos redime. Afinal, "o Senhor é bondoso e compassivo (Sl 102,8), te perdoa de toda a culpa e cura toda a tua enfermidade; da sepultura ele salva a tua vida e te cerca de carinho e compaixão. Não nos trata como exigem as nossas faltas, nem nos pune em proporção às nossas culpas. (Sl 102,3-4.10).


Ao nosso Deus toda honra e toda a glória pelos séculos dos séculos


 

1 JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Dies Domini, n.29.

2 "Este cântico selvagem, composto em honra de Lamec, herói do deserto, é recolhido aqui como testemunho da crescente violência os descendentes de Caim". Nota b, Bíblia de Jerusalém, p. 40.

3 RUSCONI, C. Dicionário do Grego do Novo Testamento, p. 294.

4 RUSCONI, C. Dicionário do Grego do Novo Testamento, p. 424.


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